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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Destino de um vampiro - Capítulo 01 (completo)

Degustação: Aproveitem o Capítulo 1 da sério Lost in the Darkness

Capítulo 01
Olhos Vermelhos
"A não realidade era escura e não doía tanto."
Amanhecer - Stephenie Meyer

Estados Unidos - Denver, Séc. XXI

     — Isso não está funcionando — avisou Emily, sentada ao lado de Sônia. Sua cadeira estava tão inclinada na direção da dela, que Sônia se perguntou como ela ainda não dera de cara com o chão.
     — Como pode ter tanta certeza? — perguntou Sônia, virando o rosto para a frente novamente e olhando para o palco, procurando algum erro na peça improvisada que assistiam na aula de teatro.
     — Bom, observe mais a srta. Margaret e menos o Andy Duval, sim?
     O tom de cumplicidade e humor na voz de Emily não deveria irritar Sônia, mas irritava. Ela sabia que Andy era o garoto mais espetacular que conhecia — gentil, atlético e engraçado — e sabia que Emily queria vê-los juntos. Porém, era esse o problema.
     Porque era tão obviamente clichê o que aquilo parecia: uma melhor amiga fazendo seu papel de intermediária em um romance entre dois adolecentes que rumava a trágicos problemas e lágrimas desesperadas no fim do dia. Um clássico na vida juvenil, e isso a irritava. Não queria ser mais uma das garotas que foram abandonadas pelo garoto do time de futebol que saíra com a patricinha do colégio no lugar dela, muito menos o assunto mais comentado nos corredores durante o intervalo entre as aulas. Ela era diferente, sabia disso, e sabia que não deveria se envolver com aquele tal de Andy porque o estranho de seus sonhos/pesadelos viria algum dia. Agarrava-se desesperadamente à essa esperança.
     Mas ainda assim era difícil não se sentir atraída por ele.
     Mesmo assim, desviou sua atenção da peça — de Andy — e focou na srta. Margaret após um leve suspiro entediado. A professora da aula de teatro tinha cabelos ruivos, pele cinzenta e enrrugada, mas ainda parecia jovem em seus quarenta e sete anos. Escondia todos os seus pensamentos atrás dos óculos meia-lua. Seu rosto estava sereno, neutro.
     — Ela parece normal para mim — disse alguns segundo depois, após cuidadosa análise.
     — Ainda bem que eu sou melhor observadora do que você. Preste atenção, Sônia. Não está vendo que ela está apertando o lóbulo da orelha?
     — E o que isso tem a ver?
     — Hello! — Emily praticamente cantou em seu sussurro baixo. — Ela é mestra na arte de atuar, logo sua expressões não condizem com o que ela de fato está sentindo. Porém, para minha sorte, o corpo precisa se espressar de alguma forma. E ela sempre fica mechendo na orelha quando está insatisfeita com algo.
     — E isso é importante por quê...? — instigou Sônia, induzindo Emily a continuar.
     — Porque eu sempre reajo mal quando algo que eu faço para a aula dela não é bem aceita. Você sabe que sou louca por teatro, eu precisava de algo que me ajudasse a me preparar para o que a srta. Margaret vai dizer. Às vezes, ela não é lá muito educada, sabe...
     — Então isso significa que Andy e todos os outros estão... encrencados?
     — Eu não colocaria nesse termo, mas pode ser esse também.
     Com outro suspiro, Sônia voltou a olhar para o palco. Andy estava vestindo uma roupa de época, encontrada as pressas no acervo do teatro. Interpretavam "A Megera Domada", de Shakespeare. E pelo modo como a srta. Margaret parou a peça pela metade, Sônia diria que Emily acertara no que dissera.
     — Parem! Está ridículo. Brittany, você não tem vocação para essa aula, nem sei porquê está aqui — reclamou ela.
     — Ah, eu sei porquê ela está aqui. Para fazer par com o Andy — acrescentou Emily, para só Sônia ouvir.
     — E mais... Laura, esse seu texto está... despresível! Tem certeza de que leu realmente a obra de Shakespeare? Porque pelo seu improviso, eu diria que não. E Andy, você se salvou querido, meu parabéns — finalizou a srta. Margaret.
     — Ah não, até ela tem uma queda pelo Andy? Ela sabe que romances entre professores e alunos não são nem um pouco aceitáveis, né? — exclamou Emily.
     Sônia revirou os olhos.
     — Se acalme, ela só está elogiando o único que foi bem sucedido nessa palhaçada toda. Não procure maldade onde não tem, Emily.
     — Sônia, não sei como você resiste. Há uma fila de garotas esperando Andy convidá-las para sair e você sequer se candidata?
     — Pra quê eu faria isso? Não sou do tipo que corre atrás de homem.
     A professora dispensou os alunos naquele momento. Sônia e Emily se levantaram de onde estavam sentadas, com suas mochilas no ombro.
     — Poxa, obrigada pela parte que me toca!
     — Desculpe, Emily. Se você quer um namorado, lute por um, mas não me jogue em cima de ninguém porque você acha que é o melhor para mim. Se Andy se interessar por mim, vai ser sem nenhuma influência alheia, tipo da minha melhor amiga, e sim por uma decisão que ele mesmo tomou.
     Com um resignado suspiro, Emily aceitou os termos de Sônia, o que fez com que ela relaxasse a postura.
     Mais a frente, no corredor empilhado de pessoas, um garoto negro, em sua cadeira de rodas, seguiu em direção à Sônia, parando quando chegou perto o suficiente das duas e as acompanhando para o almoço. Seu cabelo ralo e olhos escuros davam a Kevin uma beleza não comum, já que, no norte, a maioria das pessoas eram de pele e olhos claros, acompanhados de cabelos também claros, assim como os de Emily.
     No verão passado, ela cortara seus longos e loiros cachos, deixando-os bem curtos. Agora, ela só ia aparando-os, matendo o corte. Já estavam na altura dos ombros, combinando com seus olhos amanteigados.
     — Isso não é vida! Estou pensando seriamente em trazer a comida da minha mãe para cá. Qualquer coisa é melhor do que essa gororoba que estão servindo na cantina — resmungou Kevin.
     — O que houve dessa vez? — perguntou Sônia.
     — Ah, o diretor mudou o cardápio da semana outra vez. E isso está deixando as coisas cada vez piores. Eu passei em frente ao refeitório, e em vez de uma fila de gente querendo comprar o almoço, eu encontrei foi uma fila pra sair de lá. Nem quero imaginar o que há dessa vez.
     — Pois eu imagino por você — disse Emily. — Que tal uma porção de frutos do mar bem mal cozinhados e horrivelmente temperados? Ou melhor, uma suculenta picanha que ficou pronta à três dias?
     — Não diga uma coisa desas, Ems. Você sabe que eles não podem fazer isso!
     — Eu sei, Sônia, mas é o que o gosto aparenta. É tão difícil mudar o cardápio, deixar as coisas mais saudáveis, sem que o gosto fique parecendo comida vencida que estava na promoção?
     Diante do improvável e deplorável tema da vez, Sônia acabou rindo daquela conversa absurda. Era completamente ridículo discutir sobre a alimentação servida pela escola quando havia uma lanchonete no outro lado da rua. E foi para lá que os três — Sônia, Emily e Kevin — foram almoçar e aproveitar a última pausa do dia. Daqui a algumas horas, eles estariam livres para ir para casa e combinarem algo para fazerem mais tarde. Um cinema, um mini-campeonato de jogos de tabuleiro na casa de Emily, ou uma festa perto do riacho... Não importava, o dia estava lindo para ficar em casa e surtar como Sônia costumava fazer. Hoje, ela queria se divertir. Os problemas pessoais, enfrentaria depois.

~•~♥~•~

     O carro corria em alta velocidade, o sol batendo de encontro contra o vidro escuro. Há muito tempo, ele perdera o medo de andar no sol; mais uma vantagem de se possuir uma alma. Mesmo assim, comprara o carro com os vidros fumês mais escuros que encontrara. Era impossível negar que só os meros raios solares o incomodavam por dentro, como se estivesse na mira de uma arma que não o machucaria.
     Já havia resolvido tudo desde que saira da muralha. Ele era um dos poucos que sabiam se virar no mundo humano sem que precisassem recorrer a alguma coisa extra para orientá-los. Acabou aprendendo o modo como os humanos viviam e agiam em grupo ao decorrer dos anos enquanto procurava uma forma de trazê-la de volta. Ele sucumbiu ao tempo e a angústia quando não encontrou nada.
     Ah, o momento em que pensou que estava tudo perdido! Seu amor por ela era tão forte e avassalador... Agora ele tinha uma missão a cumprir com êxito e o mais rápido possível. A última coisa que ele queria era deixar Saulo muito tempo com Blair.
     Há séculos, decidiram parar com aquela maldita disputa — de que adiantava? Ela caira no Sono de Pandora — de onde poucos conseguiam voltar. Mas, diante de seu retorno eminente, os ciúmes retornaram com mais força. Ele a salvaria e ela seria dele para sempre — era o que ele repetia a sí mesmo.
     O toque conhecido causou um estranho impácto em seu coração, quase como se já soubesse quem era.
     E tinha razão.
     Ele pegou o celular no bolso de sua calça jeans. Ele estava vestido feito um adolescente, com sua blusa pólo e seus... óculos escuros — pelo menos até se alimentar. Depois de anos de experiência, ainda era complicado controlar a aparência estando com fome.
     — Alô — disse Dave. — O que houve, Karina? Ela está bem? — Ele se
preocupava com ela, estando assim tão longe e sem poder vê-la.
     — Olá, Dave. Eu estou bem, obrigada por perguntar — disse Karina, retoricamente.
     — Desculpe. Como vai, Karina? Tudo bem com você? — Dave disse as últimas palavras com ênfase.
     — Agora melhorou.
     — E ela?
     Do outro lado da linha, um suspiro de desistência.
     — Está na mesma. Saulo está com ela, fazendo sabe-se lá o que.
     — Como assim? — falou ele, muito lentamente, controlando-se para não freiar o carro bruscamente e fazer a volta.
     — Eu não sei, estou ligando para avisá-lo. Ele pediu aos empregados para trazerem toalhas, uma faca de prata e pedrarias, um pouco de sangue do estoque pessoal dele... e velas.
     — O que ele pretende?
     — Jura que você não se lembra do que acontece quando um vampiro quer usar esses materiais?
     Então Dave sabia o que estava acontecendo, o que Saulo queria. E quem se importa? Ele mesmo não pensara nisso anos atrás?
     Só que ele se importava.
     Condená-la a essa vida só para que ela retornasse era muito egoísta. Uma deusa não podia viver como seus suditos, sequer se misturando com eles. Por anos e anos, ela fora idolatrada, mas somente aqueles com alma puderam conhecer sua face encantadora.
     Ela não poderia ser transformada sem sua alma para rendê-la depois.
     — Pare ele agora! Se necessário, arrebente a porta. Isso não pertubará o sono dela.
     — Tudo bem.
     A linha ficou muda, com aquele bipe irritante indicando o fim da chamada.
     Se fosse possível, Dave pisaria ainda mais no acelerador, mas o carro já estava no máximo da velocidade.
     Dave estava perto de seu destino.

~•~♥~•~

     O sol não estava tão forte quando Sônia chegou em casa. Seu moletom fora suficiente para proteger sua pele dos raios solares. Já na sala, ela largou a mochila no chão, próximo ao sofá, abaixou o capuz e puxou o moletom de seus braços, deixando-o cair lentamente.
     O silêncio era ensurdecedor. Não havia ninguém em casa. A mãe provavelmente fora buscar Kelly e suas amigas na escola, que ficava a míseras quatro quadras de casa, e levá-las as costumeiras compras de sexta-feira. Elas nunca a chamaram para esses programas em família e amigos. Não que ela quisesse ir. Só era importante se iludir em pensar que se importavam com ela. Que apesar dela não ser a garotinha perfeita que nem Kelly, tinha alguma importância.
     Mas acreditar nisso exigia um esforço tremendo. Era mais fácil ignorar.
     Diante do vazio da sala, pegou a mochila e subiu para o quarto, trancando-se lá dentro. Não passou pela cozinha, como costumava fazer. Ainda estava cheia do almoço que comera na lanchonete junto de Emily e Kevin.
     Não queria surtar, mas precisava. Era viciante o modo como se sentia melhor estando no mundo das ilusões, embora ela o achasse assustador quando era pequena. Sua adorável loucura sem sentido. Não tinha esse tipo de sonho há muito tempo, ele havia voltado recentemente. Ficara amedrontada no início, mas agora, aquele tipo de psicose havia ganhado um cunho completamente diferente.
     Caiu no tapete felpudo cinza de seu quarto, e em seguida deitou-se confortavelmente sobre ele. O teto pareceu girar e cair em um ângulo estranho. Olhou para os lados e de repente não estava mais em seu quarto.
     Havia pessoas elegantemente vestidas ao seu redor e a cumprimentavam educadamente, fazendo-lhe uma reverência. A maioria dos casais dançavam e giraravam trocando de par de tempos em tempos. Vestidos esvoaçantes roçavam no piso de mármore polído, saltos marcavam os paços. Tudo muito bem cronometrado.
     Foi então que Sônia sentiu aquela presença familiar atrás dela, mas não se virou. Ficou tensa e com o pulso acelerado. Era medo misturado com intensa curiosidade e fascínio. As mãos dele se fecharam em torno das dela, guiando-a para um canto mais afastado do salão.
     — Não deveria estar aqui com você, mas fico feliz quando estou em sua companhia — sussurrou ele em seu ouvido.
     — Também fico — assegurou ela. Hesitou por um breve momento, mas depois expôs a dúvida que martelava em sua cabeça. — Que lugar é este?
     — Esqueceres? — surpreendeu-se ele.
     — Não responda uma pergunta com outra — repreendeu ela.
     — Algumas perguntas não precisam ser respondidas. Só... sinta a resposta, mesmo que não a conheça. Um dia, irá saber.
     Então ele virou-a de frente para sí, trazendo-a para seu peito. Conduziu-a em uma dança lenta e envolvente. No meio de tantas pessoas vestidas para um baile, sentiu-se em casa — sentimento há muito esquecido.
     E como sempre, o rosto de seu acompanhante era incerto, indefinido. Mas seus olhos eram e sempre seriam os mesmos. Aquela borda vermelha, os cílios grossos e ascendentes... Foram aqueles olhos que a conquistaram a princípio, mas agora, mesmo sem vê-lo por completo, ela sabia: ele era diferente de todos os garotos que já conhecera, de uma maneira inteiramente diferente.
     E isso era encantador.
     Então o sonho deu uma guinada estranha. Estava envolta em sombras, dentro de um círculo de fogo com chamas altas e perigosas. Gritou, buscou por ele. E nada viera de volta. Estava sozinha no meio do grande vazio de sua própia mente.
     E da escuridão, três palavras abafadas a assustaram mais do que se tivessem sido gritadas.
     — Você me roubou.
     Acordou assustada e gritando a plenos pulmões, como a louca que era. Se sua família estivesse em casa...
     Ficou aliviada ao ver que estava tão sozinha agora quanto quando chegou. Não conseguia sequer pensar no que sua mãe faria se descobrisse que voltara a ter surtos psicóticos.
     Nunca voltava bem quando vinha daqueles surtos, nunca era ela mesma. ao mesmo tempo que era. Uma sensação estranha possuía seu corpo, como se ela estivesse vivendo em um outro tempo. Parecia outra pessoa às vezes, completamente diferente e igual ao mesmo tempo. Esse sonho havia terminado de uma forma aposta ao casual, e ela sequer sabia o porquê.
     Ainda tonta, ficou sobre seus pés e andou com dificuldade até o banheiro. Olhou a sí mesma, no espelho; seu rosto pequeno emoldurado por cabelos negros com aquele estranho e bonito reflexo avermelhado, seus lábios rosados, seus olhos azuis de uma transparência invejável, sua pele clara... E mesmo reconhecendo cada traço de sua pessoa, não se sentia a vontade com o que via.
     Era como se seu cabelo, que começava liso na raiz e ia ganhado leves cachos nas pontas, seus olhos, sua boca... Como se nada daquilo fosse realmente seu, embora a pertencesse de fato.
     Era uma estranha para sí mesma.
     Ligou a torneira e encheu a banheira de água gelada. Enfiou-se dentro dela, de roupa e tudo, afogando-se, deixando-se ser levada pelo esquecimento. Fechou os olhos, e segurou os ar em seus pulmões.
     Emergiu rapidamente após alguns minutos, ofegante. Mas não foi falta de ar que a fez retornar, e sim os olhos escuros emoldurados por uma sinistra borda vermelha que a assustaram. Podia jurar tê-los vistos logo acima d'água. Com medo, olhou ao redor no banheiro e agradeceu mentalmente por não encontrar nada fora do comum. O exterior estava na mesma que a três minutos atrás, era seu interior que precisava de ajuda. Mas isso não significava que ele quisesse.
     Lentamente, foi se acalmando, normalizando a respiração. Saiu da banheira e se livrou das roupas molhadas, deixando-as jogadas no piso do banheiro, e enrrolou-se em uma toalha limpa e seca.
     No quarto, abriu o armário e tirou uma muda de roupas limpas, ainda com cheiro de amaciante. Nada muito complicado, só uma regata básica, com uma camisa de mangas por cima que marcava suas curvas e uma jeans. Ficou descalça mesmo, sentindo os pelos do carpete cinza sob seus pés. Pegou a toalha novamente e secou seus cabelos que perdiam quase toda aquela vermelhidão quando molhado. Com a escova, somente desembaraçou e deixou que se ajeitassem sozinhos, dando à ela, um charme natural.
     Sentou-se na escrevaninha e ligou o computador.
     A maior parte de seus amigos estavam online nas redes sociais, mas ela só queria falar com uma pessoa;
     Marco Hussett.
     Pai — escreveu ela, feliz por finalmente conseguir contato depois de semanas sem trocarem uma palavra.
     Oi, minha filha — respondeu ele. — Como está? As coisas estão bem por aí?
     A mamãe e Kelly sairam, o senhor sabe. Sexta-feira.
     Ah, claro. Havia me esquecido disso.
     E comigo... — Sônia hesitou por um breve momento. Diga a verdade, disse a sí mesma. — Aqueles surtos que eu costumava ter quando pequena... voltaram.
     Marco levou mais tempo do que de costume para escrever.
     E como você tem agido?
     Faço o que o senhor sempre me aconselhou a fazer. Fico deitada enquanto aguardo o sonho acabar — não era mentira. Sônia só omitiu o fato de que gostava de estar no mundo das ilusões de vez em quando. Fazia mais sentido do que realidade.
     E tem melhorado? — perguntou Marco.
     Não, a frequência é mesma. Sempre.
     Estão mais frequentes então?
     Sim. Não precisa mais se preocupar, papai. Já sou bem grandinha para saber quando é e quando não é real. — Sônia suspirou e voltou a digitar. — Parece até uma viagem no tempo, sabe? Eu percebo isso pelas coisas que vejo, no modo das pessoas se vestirem... Não é ruim, exatamente. Só não é normal, mas tudo bem.
     Não se preocupe, vai melhorar. — assegurou Marco. — Mudando de assunto... Lembre sua mãe de pegar a Carrie no aeroporto amanhã.
     Ela chega que horas? — a ansiedade cresceu dentro de Sônia.
     Por volta das duas da tarde. Cheguem no mínimo meia hora antes, o.k.? Eu nunca sei o que acontece com esse horários. Alguns voos se adiantam, outros atrasam...
     Pode deixar, eu aviso.
     Cuide-se.
     O senhor também. Estou com saudade — escreveu ela com sinceridade.
     Também, minha filha. Logo, voltarei para casa, e você poderá passar uma temporada comigo. O que acha?
     Maravilhoso — Sônia sorriu.
     Te amo, minha filha.
     Idem!!!!
     Rsrs, até logo.
     Tchau, pai.
     E Marco ficou off-line. Sônia suspirou, e se perguntou se demoraria muito para seu pai voltar para a cidade.
     Como empresário, seu pai viajava muito e nunca ficava mais do que algumas semanas uma cidade. Como resultado disso, não possuia endereço fixo, e isso era uma lástima. Privava Sônia da pessoa que ela mais amava e de quem mais sentia falta. Seu pai a entendia melhor do que ela a sí mesma, e isso era surpreendente.
     Mas para seu alívio, Carrie chegaria amanhã. Sua melhor amiga se voltaria para Denver e continuaria na mesma escola que ela. Seria recebida em sua casa, onde ficaria por mais ou menos três meses, até que sua mãe voltasse das férias prolongadas. E depois, seria a vez de Marco tirar férias do trabalho e voltar. Elas se mudariam para a casa que ele compraria, e tudo ficaria bem.
     Era o que desejava.

~•~♥~•~

     Três batidas muito irritadas na porta não pertubaram Saulo. Ele queria fazer uma coisa, planejara vencer sobre Dave. Mas agora, olhando o rosto sereno de Blair... Vendo o vazio em seu rostinho pequeno... Nem mesmo a curva que aparecia sempre que ela ria e que agora estava ausente, ou o brilho de seus olhos azuis, até mesmo o reflexo violeta que seus cabelos negros costumavam exalar... Nada disso tinha mais vida. Blair nunca parecera tão morta quanto agora.
     Saulo só entendeu que estava chorando quando uma de suas lágrimas sangrentas caiu na pele pessegosa de Blair. Ele se iludiu, pensando ter visto um leve tremular em suas pálpebras, mas sabia que era mentira. Naquele estado, Blair jamais conseguiria se mexer.
     E quanto ao seu plano idiota, parou na metade do caminho. Chegara a cortar a palma da própia mão, mas não teve coragem de derramar seu sangue na boca de Blair.
     Ela iria querer isso?, perguntou ele a sí mesmo. Só espero que aquele idiota do Dave faça algo de útil dessa vez e traga ela de volta pra mim.
     — Não se preocupe, meu amor. Dave vai dar um jeito de salvá-la. Você vai ficar bem. E se ele falhar, eu dou o meu jeito — assegurou ele, falando para a quase-morta Blair Marshall.
     As batidas aumentaram ainda mais. Com mais força e mais intencidade, como se quisessem derrubar a porta.
     — Por favor, Sr. Saulo, abra a porta. Não pode fazer isso com Anita! Sr. Saulo! Dave está muito irritado, já sabe o que está acontecendo. Será proibido de vê-la se não sair agorinha daí! Sr. Saulo Ignoro, não estou brincando. É melhor você sair — avisou karina, com um forte sotaque britânico.
     Saulo levantou-se da cadeira, que estava perto da cama, para abrir a porta de madeira que fora forrada por belos detalhes em ferro.
     Karina entrou, passando por ele feito um furacão. Apressou-se em chegar a Blair e cheirar seu pescoço. Seu sangue ainda estava puro.
     Girando o vestido verde escuro renascentista que usava, virou-se para Saulo com um olhar exasperado.
     — Vamos conversar no jardim e deixar a deusa Anita ter seu sono em paz — disse ela.
     Saulo não teve escolha, a não ser acompanhá-la. Entendiado, seguiu-a pelos corredores.
     Era impressionante o quanto vampiros gostavam de ferro. Em todos os cantos, sejam paredes, vidraças ou portas de alvenaria, sempre havia algum detalhe muito bem trabalhado em ferro puro. No meio do caminho, encontraram uma das serviçais do castelo. Karina pediu a ela que trouxesse uma toalha banhada em água gelada para Saulo e assim, o corte em sua mão, feita pela faca de prata, desapareceria.
     O jardim era um espaço amplo, cheio de flores vermelhas, brancas, roxas, azuis... Todas as variedades de flores que pudessem se adaptar ao solo. As favoritas do reino eram as tulípas e as orquídias, pelo simples fato de que eram elas que Blair mais amava.
     Todos sentiam falta de Anita.
     Demorou anos para que a deusa dos vampiros retornassem em mais uma reencarnação, e mais alguns anos até que se tomasse conhecimento de seu retorno. Foi sem igual a alegria dos vampiros ao saberem que a deusa fora encontrada. Para quem não podia sentir nada de bom, o amor voltado para Anita era uma contradição.
     — O que você estava pensando? — perguntou Karina. Sua voz era de puro assombro e repreenção ao mesmo tempo. — Não tem ideia do que faria a ela se a transformasse agora? Ela está sem a alma, Saulo. Dividida entre dois mundos. Isso jamais aconteceu, não sabemos das consequêcias!
     — Amo Anita, jamais faria mal algum a ela — Saulo tentou defender-se, mas não tinha argumentos tão fortes quanto os que Karina tinha.    
     — Sei que a ama, mas nós não podemos correr nenhum risco quanto a Blair! Ela é a nossa deusa, reencarnação de Anita. Sabe o quão zangado nosso povo ficaria se algo acontecesse a ela? E mais, se ela virasse uma vampira agora, eles fariam perguntas! Se eles descobrirem que pretendemos matar a nova reen...
     — Nem sei como se importam! — resmungou Saulo, interrompendo Karina. — São um bando de cascas vazias.
     — Eles podem até não ter sentimentos, afinal, não possuem alma, mas... Ela é importante, sabe disso. Anita deu a vida para nos proteger. É mais do que nosso dever retribuir. Ela nos amou e cuidou de nós quando todos os outros deuses pretendiam nos exilar. Não somos seres que fiquem exatamente a vontade de servir de escravos para eles, não é?
     — Não precisa me contar nada, já sei a história.
     — Mas às vezes, você parece esquecê-la. Você já não vê mais Blair como a deusa Anita, portetora dos vampiros, e sim como a mulher com quem você quer se casar desesperadamente porque teme que seu melhor amigo fique com ela — acusou Karina, disparando palavras sem pensar no quanto elas poderiam machucar.
     — Dave não é mais meu melhor amigo. Ele roubou o afeto dela de mim. Eu a ví primeiro — novamente, Saulo tentou defender-se. Mas quanto a isso, ele não se importava em convencer ninguém porque acreditava firmemente no que dizia.
     — E ela também o viu, mas não foi por você que ela se apaixonou. Essas coisas acontecem, Saulo. Cuide dela como é seu dever, como filho do imperador, e depois que Dave cumprir a missão dele, Blair estará de volta e então...
     — E então meu pai seguirá com os planos de casamento — interrompeu ele.
     — Não! Deixe que ela escolha. Foi por causa desse casamento idiota que ela ficou assim para começar. É necessário um grande conflito sentimental para cair no Sono de Pandora — disse Karina, relembrando do momento em que Saulo entrara pela porta do castelo, todo ensanguentado após a batalha de disputa. Blair deve ter achado que Dave morrera e então, dividida entre tantos sentimentos, se entregara a única coisa que daria a ela um pouco de paz — o Sono de Pandora.
     — Sinto muito, mas jamais deixarei Blair livre para Dave. Ele me traiu, e agora me verá como marido da mulher que ele ama.
     Saulo saiu batendo o pé, irritado. Ele tinha tomado aquela decisão no momento em que a conhecera. Agora, era uma questão de honra. Roubaram algo que ele declarara posse, e pretendia recuperá-la. Era dono de seus afetos. Blair não poderia sequer dirigir a palavra para aquele infeliz do Dave a partir do momento em que eles subissem no altar novamente.
     Mas primeiro, o idiota tem que cumprir sua missão.

~•~♥~•~

     O celular tocou baixo, soando pelo cômodo quase vazio. Sônia abriu os olhos lentamente, se vendo no escuro total do quarto.
     Já anoiteceu?, perguntou ela a sí mesma.
     Virou o rosto de lado e olhou o relógio na mesinha de cabeceira. Sete horas da noite. Estava cedo para Sônia dormir. Seu breve cochilo fora apenas para recuperar as forças que havia perdido ao surtar. Essa era a parte que ela odiava.
     O celular tocou novamente.
     Espreguiçando-se, tateou a cama, em busca do aparelho. Não fazia muito tempo, sua mãe em uma atitude surpreendente, se lembrara do aniversário de Sônia e dera a ela um daquele celulares modernos com nomes complicados do qual nem se importara de decorar. Se o aparelho funcionasse, já era suficiente. É claro que a atidude da sra. Hussett fora algo a ser levado em consideração. Talvez ela se importasse com Sônia mais do que deixava transparecer. Mesmo assim, ainda havia todo um abismo entre as duas. Parecia até que pertenciam a mundos diferentes...
     — Alô? Que foi Kelly? — resmungou ela. Sua irmã sempre ligava para perguntar coisas totalmente desnecessarias e absurdas.
     — Oi, maninha — cumprimentou ela, ligeiramente desagradável. — Mamãe quer saber se você quer se encontrar com a gente aqui. Estamos na praça de alimentação do shopping, com o tio Érick — disse ela, a voz fina de causar inveja e qualquer cantora.
     — Não, obrigada. Acho que vou ficar em casa mesmo. — Se Érick estava lá com elas, já era motivo suficiente para colocar mais do que trinta quilômetros de distância entre os dois.
     — Ah, o.k., então.
     — Espera, o papai disse que o voo da Carrie chega às duas da tarde. Avise logo a ela.
     — Pode deixar. Tchau.
     Sônia se segurou para não jogar o telefone no outro lado do quarto. Sabia que Kelly não daria recado nenhum a mãe, porque odiava Carrie por motivos tão fúteis e sem fundamento que não faziam o menor sentido. Não que perder o quase namorado para a melhor amiga da irmã fosse algo do tipo sem sentido, mas que não era segredo para ninguém que Kelly não gostava dele de verdade. Então pra quê a birra? Era o que Sônia se perguntava todos os dias.
     O celular voltou a tocar.
     — O que é agora? — resmungou ela, mas parou quando viu quem era no identificador de chamada. — Oi, Emily.
     — Amiga, você não sabe o que está perdendo! Vem agora para o Monte, por favor!
     — O que foi? — Além da voz de Emily, Sônia conseguiu distinguir um alto barulho no outro lado da linha, como vozes elevadas e uma batida contagiante... Música?
     — Está tendo meio que uma reunião do pessoal do médio e seus amigos aqui. Está super divertido. Faça um favor para sua vida social e apareça, tipo assim... Agora!
     — Tá, tudo bem. Já estou indo — falou apressada.
     Sônia pegou sua bolsa pequena na mesinha e passou a alça por cima da cabeça. Descendo as escadas, pegou a chave do carro e saiu.
     Seu carro não era tão chamativo, ou caro como o da mãe. Kelly já procurava em artigos esportivos o modelo que compraria já que em um ano, ela tiraria a carteira. Estava animada como Sônia nunca vira.
     O modelo popular de seu carro fora a melhor maneira que achou para deixar claro para toda a vizinhança que ela não era tão posuda quanto a mãe. Que não gastava tanto dinheiro como a mãe. Que não era como a mão e fim de papo. Funcionou até certo ponto. A maior parte dos vizinhos gostava do jeito dela, as poucas pessoas que não aceitavam esse estilo mais simples eram aqueles que faziam parte do círculo social em que a mãe e kelly viviam.
     Meia hora depois, estacionou o carro perto de uma árvore grande e de galhos longos, mais afastado dos outros veículos. Desceu e travou as portas, guardando a chave em seu bolso. Pegou a tão familiar e usada trilha na floresta, encaminhando-se para o Montinho.
     O Montinho fora o nome dado por seus colegas de classe para o lugar perto do riacho em que eles faziam festas, reuniões, jogavam algum tipo de esporte... Sempre tinha algo legal para se fazer lá. Era disso que Sônia precisava: se distrair.
     — Emily — chamou Sônia, gritando o nome dela.
     Emily estava perto da fogueira, montada de qualquer jeito. Conversava animadamente com Todd, um garoto que jogava com Andy no time de futebol, e um garoto que ela não conhecia.
     Aproximou-se mais e prendeu a respiração quando olhou nos olhos do garoto novo.
     — Sônia, este aqui é o Dave Thorton, amigo de Todd. Acabou de chegar na cidade — explicou Emily.
     Ele sorriu educadamente, analisando Sônia de cima a baixo.
     — É um enorme prazer conhecê-la — disse ele.
     — Igualmente — sussurrou Sônia.
     O coração dela disparava, suas mãos suavam. Posia jurar que ele lhe era familiar... Não, ela tinha certeza, já o conhecia de certa forma. Mas de onde?
     — Todd, me mostra onde eu pego mais um pouco dessa bebida. Está maravilhosa — pediu Emily, levantando o copo de plástico que segurava.
     Era óbvia a tentativa dela de deixar Sônia e Dave sozinhos, mas não protestou porque não conseguia falar. Sentiu-se intrigada, pois simplesmente não conseguia lembrar de onde o havia visto, e engasgada ao mesmo tempo. Eles sairam deixando-os alí, na beira da fogueira.
     Sônia queria ignorá-lo, mas não conseguia. Era atraída por ele de todas as formas imagináveis. O que era aquilo que invadia seu corpo assim, tão repentinamente?
     — É bom finalmente conhecer você — disse ele, baixo demais.
     E por um momento, Sônia pensou ter visto um leve vislumbre de vermelhidão nos olhos escuros daquele rapaz esbelto.
     Os olhos vermelhos de seu sonho/pesadelo.

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